domingo, 12 de janeiro de 2014

Cotidiano em fotos (II)

A primeira foto trata-se de jovens da comunidade jogando basquete na quadra da Escola Estadual Clériston Andrade, no início dos anos 80.
 
 

A foto abaixo mostra minha mãe e minha irmã no ponto de ônibus. Havia uma linha Itacaranha x Terminal da França e o final de linha era na venda de Seu Esqueleto. O asfalto era recente e ainda não tinham muitas casas construídas. Basta olhar para o fundo da foto para ver ainda vegetações. A foto é de abril de 1983.


Meu pai, Eduardo Leiro, demarcando o campo de futebol Lagoa Dourada. Ele acordava cedo para realizar este trabalho antes dos jogos começarem. Era uma Liga bem organizada. A foto é do início dos anos 80.


Cotidiano em foto

Como eu disse antes, as festas de 15 anos eram pomposas, dentro da nossa realidade: as meninas e os rapazes impecáveis, apesar da origem humilde. Era um momento esperado, quando uma menina completava 15 anos. A minha terceira irmã não quis, o que já significava talvez uma mudança de olhar sobre o evento. O sentido real, o de apresentar a jovem aos rapazes da sociedade, se perdia. O que a gente queria mesmo era um bom motivo para fazer uma festa.
 


Infância e adolescência no subúrbio

Eu costumo dizer que meninos e meninas não vivenciam uma mesma situação do mesmo jeito, pois a cultura de gênero acaba orientando as sensibilidades.
 
É claro que meninos e meninas iam à praia, mas a maneira de viver aquele espaço dependia muito da cultura de gênero. Quando se é criança, essas culturas começam a ser definidas, mas é na adolescência que o rito se torna mais diferenciado e talvez isso leve ao que chamamos de "crise na/da adolescência": saber que as fronteiras estão cada vez mais nítidas e separadas.
 
Mas vamos aos ritos: quando era criança brincava de tudo, não havia tanta distinção de gênero, até porque não tínhamos irmão. Éramos 4 meninas. Tal como a música Teco-Teco, interpretada por Gal Costa, com a exceção da cantoria afinada, a nossa brincadeira consistia em subir em árvore, brincar de picula, de "se esconder", confeccionar e empinar arraia (temperávamos a linha), ir à praia, pular corda, enfim eram brincadeiras bem dinâmicas que envolviam espacialidade e motilidade. As bonecas só começaram a fazer parte (coincidentemente ou não) depois da chegada da televisão.
 
Na adolescência, depois dos 14 anos, deixei de brincar com os meninos (o que fazíamos costumeiramente), já estava me preparando para debutar. Tive direito à valsa de 15 anos e a dançar com 15 rapazes.
 
Costumo dizer que, para mim, naqueles anos, o subúrbio era ideal para uma criança, mas para uma adolescente ou um adolescente era terrível porque as oportunidades de desenvolvimento eram muito poucas. Refiro-me especialmente às oportunidades de estudo e de trabalho. Lembro-me que os rapazes começavam a trabalhar ajudando no negócio familiar, em geral mercearias, "vendas" ou atuando  no setor rodoviário ou militar. Para as meninas, as chances eram mais remotas ainda, pois, em geral, quase todas tinham como única opção o casamento e se tornavam, quase sempre, donas de casa.

É importante ressaltar que muitas mulheres ajudavam os maridos no pequeno comércio, isso quando não eram donas do próprio negócio.
 
Entre os 12 e 18 anos, estudei no Clériston Andrade e no João Florêncio Gomes, portanto boa parte da minha vida foi escolar, mas, nos finais de semana, tinha muito movimento durante o dia, com os jogos no campo da Lagoa Dourada. À noite, fazíamos festas, tipo discoteca, e reuníamos muita gente, mas como o espaço da nossa varanda não cabia todo mundo, muitos ficavam do lado de fora. Um amigo de nome Brás, uma pessoa extraordinária e muito centrada, organizava e servia como mediador. Entrar nesta festa era o início de uma amizade e foi assim com Oliveira que, mais tarde, fez parte de nossa quadrilha junina.
 
No Domingo, era dia de praia e descíamos cedo para termos mais chances de escolher um bom lugar. Era sempre divertido ir à praia de Itacaranha. Quando era meninota, duas rodas de trator faziam parte da paisagem da praia e quando a maré estava bem alta dava para saltar de cima delas.
 
Já durante as férias, íamos para a casa de parentes e quando não era possível intensificávamos o que vivíamos nos finais de semana e, claro, conversávamos muito sobre namoro, afinal, sem os amores, a adolescência não seria uma adolescência. Sobre este assunto, falarei mais tarde em outra postagem.
 
Falávamos de namoro e também namorávamos. Devo salientar que faço parte do que se convencionava chamar de "moça de família", o que me colocava já em uma posição nas relações sociais e indiretamente em conflito com as que eram consideradas, por pura convenção, como meninas mais descoladas (para citar um termo mais atual). Naqueles anos, dizia-se que eram meninas mais "atiçadas" e era óbvio que se perguntássemos a essas meninas se elas se viam assim, certamente diriam que não, mas o rótulo, ambos os rótulos, eram terríveis. 
 
Em Itacaranha, não tinha clubes, espaços de lazer institucionalizado, por isso íamos para o Flamenguinho, um clube que ficava em Periperi. Os carnavais neste espaço eram simplesmente inesquecíveis. As músicas, as serpentinas, os confetes, as pessoas (destaque para uma senhorinha de aproximadamente 70 anos que todo ano estava lá e brincava sozinha no meio de todos os adolescentes e jovens. Ninguém a espremia, havia ainda educação e respeito aos mais velhos, por isso ao longo de muitos anos a víamos por lá, com passinhos lentos e bracinho pra cima, dando voltas no salão). Havia ainda o "baile do mela-mela" no turno vespertino que era divertidíssimo, não apenas pela sujeira e o aspecto lúdico, mas porque os rapazes e moças aproveitavam este momento para flertarem, tocando-se, e o espaço do corpo mais "atacado" era o rosto (quando passávamos por perto do rapaz que gostávamos, quase oferecíamos generosamente o rosto para a tinta (rs)) ... É interessante como a sociedade cria ritos que consentem certos gestos que em outro momento e espaço seriam ofensivos. O Flamenguinho era um clube, naqueles anos, familiar. À noite, de menor, só entrava com os pais. Era o nosso caso. Sem dúvida, o Flamenguinho prestou um serviço de lazer com qualidade aos moradores do subúrbio ferroviário naqueles anos. 
Quadrilha Junina (1978), realizada na Rua Rio Madeira, 19-E, Itacaranha.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

COMENTÁRIOS DE SANDRA DE PLATAFORMA

Olá Lúcia! Adorei o seu blog!!! Ao fazer a leitura senti uma emoção muito grande e foi como se reavivasse em mim cenas da minha vida que estavam esquecidas no âmago do meu ser. Muito bom!!!! Um grande abraço, Sandra ( do subúrbio também, só que de Plataforma ) Ok!!
A nossa memória é o que temos de mais precioso, já que ela nos faz dar sentido às coisas. Sem memória não significamos, não mudamos sequer a realidade. Não vemos o que fomos e onde chegamos e, por conseguinte, perdemos a dimensão de futuro.

A memória também é a nossa área de recreação. Nos divertimos com ela, sorrimos, mas também nos emociona, nos faz sentir saudades. Sinto falta das águas cristalinas da praia de Itacaranha, hoje suja e completamente decadente. A vizinhança cordial, as crianças sem malícia acintosa, os adolescentes inventivos, os jovens com sede de viver. Os idosos respeitados como lideranças comunitárias e não menosprezados e envergonhados com tantas ofensas a imorredoura ancestralidade.

Eu não gostava de Itacaranha quando jovem porque ela representava um entrave às minhas ambições: de estudar, de profissionalizar-me, de conhecer o mundo. A Itaracaranha a qual me refiro é a que está na minha memória e não existe mais. Ela só poderia ser sentida em sua plenitude, paradoxalmente, afastada dela, como um lugar mítico, no passado, deliciosamente bom, acolhedor de se visitar. Itacaranha era o lugar que toda criança deveria estar.

JORNALISMO POPULAR

Hoje em dia tem-se falado em popularização da ciência, democratização disso e daquilo outro, mas em Itacaranha, dos anos 70, um grupo de jovens resolveu fazer um jornal de crítica, porém bem humorado, bem ao gosto dos seus organizadores.

Por acaso, encontramos um exemplar, cuja capa foi digitalizada e divulgada na postagem anterior. Alguém se lembra desse jornal? Quem nunca ouviu falar em seus redatores?

Eu era muito jovem, 14 aninhos, nem tinha dançado a valsa de 15 anos, quando este jornal circulou em Itacaranha. Havia uma quantidade limitada de tiragens, mas seus mentores deram um exemplo de como se desenvolve uma atividade comunitária com base na informação e na interação, ainda que tecnicamente artesanal. O jornal era datilografado, diagramado e desenhado sem qualquer recurso sofisticado, a não ser os dedos das mãos, e para não dizer que era de todo artesanal, havia a presença de uma Remington de segunda, quiçá décima mão, e o famoso mimeógrafo (alguém se lembra dele?).

Mas o jornal também se tornou um laboratório para aqueles que tinham a veia jornalística mais aflorada, como é o caso de Adilson Fonseca, que se tornou jornalista mais tarde.  Porém antes disso, "Dico", como era popularmente conhecido, contribuiu para uma formação política dos leitores, juntamente com Renê de Oliveira, Luiz Carlos Fonseca e Hiran Coutinho, na medida em que fez circular, no bairro, informações referentes às questões do subúrbio (outras mundiais, nacionais), que, na época, muito mais que hoje, era completamente esquecido pelos jornais vultuosos.

O Clarim, metáfora da alta voz, falava das coisas que aconteciam em Itacaranha e que nem sempre saiam nas páginas dos jornais e na TV. Era o atual facebook (guardando as devidas proporções), orkut, torpedo numa época em que a ditadura estava em seu declínio, mas ainda pairava no ar a censura. O Clarim, que rima com Pasquim, tinha um pouco do deboche, do pastiche, da ironia, numa crítica inteligente à conjuntura, feita por jovens suburbanos esclarecidos que estavam antenados com as questões sociais e políticas da época.

O CLARIM - JORNAL DE ITACARANHA

domingo, 5 de dezembro de 2010

ITACARANHA "DE CIMA"

Nos mudamos para a Rua Rio Madeira, 19-E, Itacaranha, mais precisamente numa encruzilhada. A nossa casa ficava de esquina com a Rua Sergi Mirim, que dava no Colégio Clériston Andrade onde estudei da 4ª a 6ª série. A casa era ampla, maior do que a que tínhamos na Rua da Estação. Além de tudo tinha um número, 19-E. :D. A rua não era asfaltada, era uma estrada de cor clara, pois predominava um solo arenoso. Andávamos sempre descalças, o que era maravilhoso. Só fui usar sandálias, obrigatoriamente, por causa do asfalto, muitos anos depois.

A casa era toda cercada por varanda feita de telha de eternit, mas o telhado da casa era feito de telhas de cerâmica (depois do trauma, minha mãe não queria ouvir falar das telhas de eternit). A área da varanda era cimentada, com cimento vermelho, com aproximadamente 2m de largura. O quintal era murado e não era plano. Era aberto, sem plantas, árvores e por isso fazia muito calor. Lembro-me dos dias ensolarados, do calor vindo daquele chão arenoso logo quando fomos morar lá. Ainda bem que meus pais escolheram um dia assim para mudança.

Era uma linda casa!

A casa ficava em frente a um campo de futebol que margeava com uma lagoa, chamada de Lagoa Dourada. Era uma lagoa mágica de onde nasciam capins. Não entendia como da água nascia capim. Ouvíamos sapos coaxarem e grilos a criquilar sempre quando, à noite, íamos brincar de "cabana" ou "coelhinho sai da toca", brincadeiras de correr, parecido com picula, mas com direito a posse daquele que se pega, confinado a uma "cabana" ou "toca".

Lá faltava muita energia e água também. Por isso, meu pai pediu para fazer uma "fonte" que, diferentemente da casa da Rua da Estação, tinha água de qualidade. Algumas pessoas, vizinhas e amigas, iam pegar água lá em casa. Com o tempo, fomos plantando e muitas árvores floresceram naquele quintal, mas sobre elas dedicarei uma postagem especial. Quando "faltava luz", brincávamos de fazer sombra na parede com os "fifós" acesos à base de querosene. Meu pai contava estórias de assombração.